A violência de gênero é uma realidade comumente enfrentada pelas brasileiras, ante a cultura machista, misógina e patriarcal que deu origem a sociedade em que vivemos. Nesse artigo será possível entender uma das variadas violências que, infelizmente, mulheres são acometidas por seus parceiros todos os dias.
Mesmo com amplas garantias legais concedidas às mulheres vítimas de violência, os índices de agressões na esfera doméstica e familiar ainda são dos mais altos nas Américas e na Europa. Victoria Barreda define “gênero” como:
“O gênero pode ser definido como uma construção social e histórica de caráter relacional, configurada a partir das significações e da simbolização cultural de diferenças anatômicas entre homens e mulheres. (…) Implica o estabelecimento de relações, papeis e identidades ativamente construídas por sujeitos ao longo de suas vidas, em nossas sociedades, historicamente produzindo e reproduzindo relações de desigualdade social e de dominação/subordinação”[1].
A professora Maria Amélia Teles é clara ao definir a violência de gênero como sendo a determinação social dos papéis masculino e feminino, o que gera caráter discriminatório quando a tais papéis são atribuídos pesos com importâncias diferenciadas. No caso da nossa sociedade, os papéis masculinos são supervalorizados em detrimento dos femininos[2].
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) traz importante definição de violência de gênero, atribuindo a característica de ofensa à dignidade humana e manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens.
Maria da Penha Maia Fernandes o ícone brasileiro de destaque para o avanço da legislação no combate à violência doméstica. Maria da Penha sofreu danos irreparáveis pelas agressões que sofreu no âmbito familiar, e exaustivamente lutou contra a omissão, a negligência e a tolerância à violência contra a mulher, contribuindo para a criação da legislação que protege as mulheres vítimas.
Foi a sua denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), que resultou na condenação do Brasil por negligência e omissão quanto à violência doméstica, que levou à revisão das políticas públicas e surgimento da Lei 11.340/2006 que leva seu nome. A Lei Maria da Penha criou mecanismos de proteção contra a violência doméstica e familiar sofrida pelas mulheres e hoje, ao contrário de muitos diplomas legais, é conhecida do povo, mudando a história da violência de gênero no país. A Lei 11.340/2006 transformou o tratamento legal dado aos casos de violência doméstica, tornando-os crime, e denunciou o cotidiano de violência a que as mulheres são submetidas, fomentando não só a denúncia por parte da vítima, como também por toda a sociedade[3].
Não é qualquer violência contra a mulher, portanto, que enseja a sua aplicação: para que seja o fato abrangido pela Lei 11.340/06, é necessário que a violência seja cometida no âmbito doméstico, familiar ou nas relações íntimas de afeto, nos termos do disposto no artigo 5º da Lei Maria da Penha.
Guilherme de Souza Nucci leciona que unidade doméstica é o local “onde há o convívio permanente de pessoas, em típico ambiente familiar, vale dizer, como se família fosse, embora não haja necessidade de existência de vínculo familiar, natural ou civil”.[4]
Dessa forma, entende-se que a empregada doméstica também inclui-se como vítima de violência doméstica, assim como as mulheres que vivem relações homoafetivas ou trans. Também a relação de namoro ou de noivado, sem a coabitação, é tutelada pela Lei 11.340/06, que exige apenas relação íntima de afeto. A violência combatida pela legislação não é apenas física, mas também a moral, patrimonial, psicológica e sexual, tratando-se de cláusula aberta que permite a inclusão de outros tipos de violência, de acordo com o artigo 7º da Lei Maria da Penha.
A primeira forma é a violência física, caracterizada por qualquer conduta que ofenda a integridade corporal, vida e saúde da vítima. Ou seja, é a provocação, de maneira dolosa, deixando marcas aparentes ou não e que causa danos à saúde e/ou integridade física da mulher. Normalmente, a violência física manifesta-se por tapas, socos, empurrões e agressões com instrumentos, contundentes ou cortantes, que podem provocar marcas físicas e danos à saúde da vítima[5].
Muitas vezes, não é a violência física que caracteriza o início das agressões, podendo preceder da violência moral e psicológica, as quais possuem o condão de diminuir a figura da mulher, avançando para a violência física no momento em que a vítima se encontra fragilizada psicologicamente e não consegue oferecer nenhum tipo de resistência. Os ataques físicos se tornam um ciclo repetitivo e cada vez mais gravosos, intensificando-se caso o agressor entenda que a mulher possa resistir.
A violência psicológica concretiza-se por qualquer conduta que cause danos emocionais e diminuição de autoestima, ou que prejudique ou perturbe o pleno desenvolvimento, saúde psicológica ou autodeterminação. É a ameaça, o constrangimento, a humilhação pessoal, e que destrói silenciosamente a mulher.
Essa violência não apresenta danos físicos ou materialmente constatáveis, tornando-se extremamente dificultosa sua identificação até mesmo para quem venha a sofrê-la. A violência psicológica se materializa através de um comportamento de rebaixamento e dominação do agressor com a vítima, proferindo palavras, indiretas, atitudes de menosprezo e humilhação, afetando diretamente o psicológico da mulher, que acaba por acreditar no agressor devido à fragilidade emocional.
A violência psicológica não consiste em um ato isolado, mas um padrão de relacionamento em que o agressor aos poucos vai exercendo o controle sobre a mulher. O agressor faz a vítima crer que ela é a responsável pelo ato de agressão, pois descumpriu um dever ou falhou. E essa inversão marca a dominação psicológica que o homem estabelece prevalecendo-se dos papéis definidos socialmente como o responsável pelas decisões e estabilidade do lar.
A terceira violência é a sexual, constrangimento com o propósito de limitar a autodeterminação sexual da mulher, podendo ocorrer mediante violência física ou através da grave ameaça. O inciso III do artigo 7 da lei 11.340/2006 define violência sexual como:
“Qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da forca; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimonio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”.
A definição apresentada pela lei é abrangente, envolvendo a prática do ato sexual não desejado, a exploração da sexualidade da mulher e a restrição dos direitos reprodutivos ou de sua liberdade sexual.
A violência moral, em geral, caracteriza-se pelos crimes contra a honra, condutas que configuram calúnia, difamação ou injúria. Previstos nos artigos 138 a 140 do Código Penal Brasileiro, a calúnia caracteriza-se pela falsa imputação a outrem de fato definido como crime. Já a difamação consiste em imputar fato ofensivo à reputação da vítima, e o ato de injuriar define-se pela ofensa à dignidade ou decoro de outra pessoa. Os dois primeiros agridem a honra objetiva da vítima, enquanto o terceiro atingirá a honra subjetiva (sentimento e apreço próprio, autoimagem, juízo que cada um faz e pensa de si). A violência moral é uma das formas mais comuns de dominação da mulher. Ofensas verbais de forma pública e privada, que vão minando a autoestima e expõem a mulher perante amigos e familiares, contribuindo para seu silêncio.
A violência patrimonial, trazida por último e foco do presente artigo consiste em qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. São condutas violadoras dos direitos patrimoniais da mulher, e que não necessariamente envolvem a violência física. Essa forma de violência ainda é pouco conhecida e poucos casos chegam ao poder judiciário.
Segundo o Professor Mário Delgado, o verbo subtrair nos leva ao tipo penal do furto, previsto no artigo 155 do Código Penal. Se a subtração se der com emprego de violência ou grave ameaça, configura-se o roubo.
Incorrerá nessas condutas tanto o cônjuge ou companheiro que subtrai às escondidas valores da mulher para gastar da maneira que lhe convier, como aquele que subtrai a parte dos bens comuns que cabe à esposa, alienando o automóvel ou os móveis da casa ou até mesmo o animal de estimação.
Às vezes a subtração ocorre com finalidade de causar dor ou dissabor à mulher, pouco importando o valor dos bens subtraídos. Evidentemente que não é todo e qualquer furto contra a mulher, ainda que praticado por ex-cônjuge ou ex-companheiro, que irá caracterizar a violência patrimonial. É preciso que a subtração ocorra em situação de violência doméstica, ou seja, em razão do gênero. E veja-se que não é porque estamos falando de casais, que crimes de natureza patrimonial não podem ocorrer. E por conta da falta de conhecimento social quanto aos crimes e direitos, que esses atos delituosos não são comunicados, na falsa ideia de que o que ocorre entre “marido e mulher” é de caráter privado.
No que tange à destruição de objetos, instrumentos de trabalho e documentos pessoais, este equivale ao crime de dano, previsto no artigo 163 do Código Penal. Caso o crime seja cometido com violência ou grave ameaça, com emprego de substância inflamável ou explosiva, ou ainda por motivo egoístico (como é o caso do ciúme excessivo), temos o crime de dano qualificado, cuja pena passa a ser de detenção, de 6 meses a 3 anos. A apuração do crime de dano, em regra, só prosseguirá mediante queixa (ação penal privada), salvo nos casos de crime qualificado, nos quais a ação será pública incondicionada.
Já a retenção de bens ou valores tem a mesma natureza jurídica da apropriação indébita, prevista no artigo 168 do Código Penal. Especificamente quanto à retenção de bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer as necessidades do cônjuge ou companheiro, podemos vislumbrar uma série de condutas típicas e, portanto, criminosas, que não são levadas ao juízo competente para a devida apuração.
As formas de apropriação indébita concretizam-se das mais diversas formas: o cônjuge meeiro que toma para si o quinhão dos bens móveis que deveria repassar à mulher; o homem, recebedor da integralidade dos alugueres de imóvel pertencente a ambos os cônjuges ou conviventes, por exemplo, equivale à retenção ou apropriação de bens ou recursos econômicos, exatamente como previsto na Lei 11.340/2006; furtar-se dolosamente ao pagamento de pensão alimentícia arbitrada em benefício da mulher; entre outros. O professor Mário explica, ainda, que:
“Além das dificuldades que transcendem a legalidade, como é caso do silêncio, da omissão e da inatividade da vítima, fatores que só impulsionam o ciclo da violência, do ponto de vista estritamente legal, os principais empecilhos para instauração dos processos criminais visando à proteção patrimonial da mulher decorrem das imunidades localizadas nos artigos 181 e 182 do CP, que isentam de pena quem comete crimes contra o patrimônio em prejuízo do cônjuge, na constância da sociedade conjugal, admitindo-se, excepcionalmente, que se proceda mediante representação, se o cônjuge estiver judicialmente separado. Por óbvio a interpretação desses dispositivos deve permitir a sua atualização, e onde se lê ‘separação judicial’, deve-se incluir ‘separação de direito ou de fato’, enquanto que a palavra ‘cônjuge’ é também compreensiva de ‘companheiro'”.
Entende-se que enquanto não se consumar a separação de fato ou de direito, o divórcio ou a dissolução da união estável, nada será feito para que a mulher tenha resguardado seu direito patrimonial, salvo se o crime for cometido com emprego de grave ameaça ou violência contra a pessoa, ou ainda quando a vítima for maior de 60 anos. Todavia, muitos desses crimes ocorrem sem que a vítima perceba a gravidade ou mesmo veja de pronto sua execução, e, infelizmente, nesses casos, não há respaldo legal efetivo a ensejar na criminalização do agressor.
Segundo o Instituto Géledes, ainda que a violência patrimonial seja verificada durante a união (como nos casos em que o homem se apodera do dinheiro que uma mulher guardava/economizava, ou administrava sozinho o valor do aluguel de um imóvel que pertencia aos dois) com a separação, as agressões ficam mais visíveis, vulnerabilizam ainda mais a mulher em um momento tão delicado:
– Registrar todos os bens do casal exclusivamente em nome do homem; possibilitando-o, em casos de união estável, desfazer-se rapidamente deles sem a autorização da companheira;
– Aquisição e registro de bens em nome da mãe ou outros familiares, para manipular a legislação e assim garantir que todos os bens construídos na constância da união sejam de exclusiva propriedade do homem;
– Recusar-se a reconhecer que o trabalho doméstico e de cuidado dos filhos possui valor financeiro atribuível, e que a mulher que se dedicou exclusivamente a estes, contribuiu efetivamente para a construção do patrimônio comum, com a sua força de trabalho e tempo;
– Desqualificar a contribuição da vítima na construção do patrimônio do casal e sustento dos filhos, desconsiderando a dupla ou tripla jornada da mulher em sua rotina de trabalho;
– Usar procuração conferida em confiança pela mulher para realizar transações financeiras que a prejudicam;
– Adquirir bens usando o seu cartão de crédito e não os pagar após a separação;
– Pressionar emocionalmente a mulher para que a divisão seja feita rapidamente e com advogado único contratado pelo ex-companheiro, acarretando perdas de direitos financeiros;
– Negar alimentos compensatórios após a separação, alegando que por ser jovem e ter formação acadêmica poderia ingressar imediatamente no mercado de trabalho, ainda que a mulher se encontre em situação vulnerável economicamente devido à ruptura da vida em comum;
– Abandonar emprego formal ou ocultar vencimentos apenas para não ter que pagar alimentos aos filhos (as) e/ou à ex-companheira e esquivar-se propositalmente do oficial de justiça para não ter que contribuir para o sustento dos filhos comuns.
– Atrasar injustificadamente a pensão alimentícia ou os alimentos compensatórios também é forma de violência patrimonial. Uma mulher privada dos recursos para a sua sobrevivência é atingida emocional e fisicamente.
Mário Delgado explica que nos conflitos conjugais, a violência patrimonial mais conhecida é aquela praticada mediante destruição de bens materiais e objetos pessoais ou a sua retenção indevida, nos casos de separação de fato, com o objetivo de coagir a mulher a retomar ou a manter-se na convivência conjugal. Entretanto, a violência patrimonial pode ter formas mais sutis e, justamente por isso, não são analisadas pelo operador do Direito sob o aspecto criminal.
A aplicabilidade dos artigos 181 e 182 do Código Penal não pode e nem deve desanimar ou servir de desestímulo ao profissional do direito quanto ao uso das ferramentas do Direito Penal contra a violência patrimonial praticada contra as mulheres. Se o cônjuge já estava divorciado, separado de direito ou separado de fato, se a união estável já estava dissolvida, ou se já havia cessado a relação íntima de afeto, deve ser feita a representação para instauração da persecução penal.
Se houve emprego de violência ou grave ameaça, ou se a vítima for maior de 60 anos, a ação penal poderá ser instaurada independentemente de representação e ainda na constância do casamento ou da união estável. Não se pode mais admitir que atos silenciosamente violentos, humilhantes, degradantes, sejam cometidos contra o elo mais fraco das relações. Inclusive, na maioria das vezes, esses casais possuem prole – menores de idade – e acabam por se tornarem os maiores atingidos pelos atos delituosos efetuados pelo homem, independentemente de quais sejam.
Referências:
http://www.rodrigodacunha.adv.br/o-queeviolencia-patrimonial-contra-mulher/
http://www.ibdfam.org.br/noticias/6819/Viol%C3%AAncia+patrimonial+contra+a+mulher%3A+%E2%80%9CA+invisibilidade+dessa+forma+de+viol%C3%AAncia+continua%E2%80%9D%2C+diz+especialista
https://www.emerj.tjrj.jus.br/serieaperfeicoamentodemagistrados/paginas/series/14/capacitacaoemgenero_110.pdf
https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-04/sp-violencia-contra-mulher-aumenta-449-durante-pandemia
https://professoraalice.jusbrasil.com.br/artigos/312151601/o-queeviolencia-baseada-no-genero
https://www.geledes.org.br/violencia-patrimonial-contra-mulher-enfrentamento-nas-varas-das-familias/#:~:text=Viol%C3%AAncia%20patrimonial%20%C3%A9%20qualquer%20conduta,e%20direitos%20ou%20recursos%20econ%C3%B4micos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-99/lei-maria-da-penhaeviolencia-contraamulher/
[1] Género y travestismo em el debate. In: OPIELA, Carolina Von. Derecho a la identidade de género: Ley 26.743. Buenos Aires: La Ley, 2012. P. 101.
[2] https://professoraalice.jusbrasil.com.br/artigos/312151601/o-queeviolencia-baseada-no-genero
[3] https://www.emerj.tjrj.jus.br/serieaperfeicoamentodemagistrados/paginas/series/14/capacitacaoemgenero_110.pdf
[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 2. ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 1.043
[5] SCARANCE, Fernandes, Valéria Diez. Lei Maria da Penha: o processo penal no caminho da efetividade: abordagem jurídica e multidisciplinar. São Paulo. Atlas, 2015.