O Brasil é signatário tanto da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos quanto da Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos. Mas é na Constituição da República que se tem a norma-matriz de tutela do meio ambiente ecologicamente equilibrado. O artigo 225 prevê que é dever do estado, assim como de toda a coletividade, preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País, sendo fonte de informações com alto valor científico, cuja aplicação é especialmente útil em farmacologia, cosmética e para as ciências médicas.
O patrimônio genético é todo uso ou informação que advém de espécies biológicas (animais, plantas, micróbios, etc), incluindo as substâncias que delas derivem. Há um enorme potencial econômico a ser explorado e protegido. Tanto é, que inclusive há casos de biopirataria em relação às informações genéticas extraídas de diversas espécies vegetais e animais. Com relação ao genoma humano, a comunidade científica nacional e internacional possui grande expectativa de descoberta de tratamentos e prevenção para variadas doenças, o que, neste momento pandêmico, pode ser muito observado.
Segundo o Ministério da Saúde e Meio Ambiente, enquanto durar a emergência de saúde, as remessas de amostra de patrimônio genético para pesquisa e desenvolvimento tecnológico, necessariamente vinculados à situação epidemiológica, poderão ser realizadas sem a necessidade de cadastramento prévio no chamado SisGen, (Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado), sistema criado para regular a exploração comercial e a pesquisa (acadêmica ou empresarial) sobre o patrimônio genético brasileiro.
Toda vez que algum empresário, produtor rural, cientista, se utilizar de espécies biológicas típicas do Brasil para sua atividade, esta utilização deverá ser registrada no SisGen. Além disso, o SisGen também regula a concessão de patentes envolvendo estas substâncias que compõe a flora e a fauna nacionais, e regula a remessa destas para o exterior.
No Brasil, possuímos também a chamada Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos (RIBPG), que surgiu da iniciativa conjunta do Ministério da Justiça e das Secretarias de Segurança Pública Estaduais. Tem como principal objetivo propiciar o intercâmbio de perfis genéticos de interesse da Justiça, obtidos em laboratórios de perícia oficial. Concebida em 2009, prevendo a adesão das diversas Unidades da Federação por meio de Acordos de Cooperação Técnica, a RIBPG foi formalizada por meio do Decreto 7.950, de 12 de março de 2013.
A RIBPG destina-se a subsidiar a apuração criminal e a identificação de pessoas desaparecidas. Para ser útil na apuração criminal, a RIBPG depende da devida inserção de perfis genéticos das amostras biológicas deixadas pelos infratores nos locais de crime (ou no corpo das vítimas), os vestígios, sejam eles de casos abertos ou fechados.
Esses vestígios, além de serem confrontados entre si, o que já permite a detecção de crimes seriais, podem ser identificados por meio do confronto com o os perfis genéticos dos indivíduos cadastrados nos termos da Lei nº 12.654/2012: os condenados e os identificados criminalmente. A identificação de pessoas desaparecidas ocorrerá mediante a alimentação sistemática dos perfis genéticos de três tipos diferentes de amostras biológicas: cadáveres e restos mortais não identificados, pessoas de identidade desconhecida, referências diretas de pessoas desaparecidas e familiares de pessoas desaparecidas.
Quando se busca estabelecer uma estrutura jurídica relacionada à tutela dos interesses relativos à manipulação de patrimônio genético, é necessário distinguir sobre qual patrimônio genético se aplicará o subsistema jurídico. Os microorganismos, vegetais e animais estão vinculados diretamente à ideia de diversidade biológica e equilíbrio ecológico do planeta, dessa forma, ficando os mesmos protegidos pelo direito ambiental.
Ao serem analisadas situações concernentes aos seres humanos, leva-se em conta uma característica que os distingue dos outros seres vivos, inerente a sua própria existência: sua racionalidade. É o que lhe permite ter consciência de seus próprios atos, adquirir responsabilidades, direitos e assumir obrigações (salvo casos excepcionais). Diante dessa condição, recebe tratamento diferenciado aos demais, de forma que os princípios que regem sua proteção jurídica, antes vinculados ao Direito tradicional, agora, são considerados acrescidos de novos pressupostos e princípios surgidos em decorrência da evolução da sociedade – que formam os recentemente chamados Direitos de 3a Geração ou ainda Direitos de Fraternidade ou Solidariedade.
Assim, quando se discute a tutela jurídica da diversidade biológica sob a ótica do direito ambiental, visa-se garantir a sadia qualidade de vida do meio ambiente. Ao tratar-se das questões atreladas à manipulação genética do material humano, o objeto da proteção seria o próprio ser humano, não somente como indivíduo, mas, também, como gênero humano. A complexidade do tema está justamente na dificuldade de se dimensionar essa interface de interesses decorrentes da manipulação genética: o direito individual de dispor do patrimônio genético e o direito difuso do gênero humano de ter preservada sua dignidade e de receber os benefícios dessas novas descobertas biotecnológicas.[1]
Bruno Torquato de Oliveira Naves ensina que parte da doutrina tem se inclinado a vincular os dados genéticos aos interesses difusos, sob a argumentação de que a informação genética alcançada por determinada tecnologia e os resultados científicos e tecnológicos obtidos a partir dessas informações interessam a um número indeterminado de pessoas.
Naves, contudo, discorda deste posicionamento da doutrina, e afirma que “a validade dos interesses difusos no discurso jurídico estaria restrita à sua vinculação ao sistema normativo, em especial aos princípios constitucionais”, de modo que, no caso dos dados genéticos, o que justificaria a inclusão no rol dos interesses difusos seria tão somente a extensão a um grande número de pessoas com legitimidade para requer proteção (NAVES, 2010, p. 81-82).
Já Adriana Diaféria ensina de forma contrária: a professora explica que, para acessar as informações genéticas contidas no DNA, foram desenvolvidas diversas tecnologias de última geração, que as decodificaram e mapearam, em princípio, para finalidades basicamente terapêuticas, visando melhorar a qualidade de vida e a saúde de toda Humanidade. Todavia, nem todos os países do mundo possuem as mesmas oportunidades de desenvolvimento científico e tecnológico, em face da diversidade econômica, social e cultural, o que poderia acarretar no desaproveitamento dos benefícios propiciados por esses experimentos de forma igualitária entre os Estados, podendo ocorrer o surgimento de discriminações genéticas.
Ainda, Diaféria diz que “a informação genética alcançada através de uma determinada tecnologia é um bem de interesse difuso porque o interesse em ser beneficiado pelos resultados científicos e tecnológicos é pertencente a um número indeterminado de pessoas”. E ensina mais:
Além dessa característica subjetiva é importante ressaltar que a informação deve ser indivisível (como tem ocorrido em alguns países em que se estabelece o patenteamento de estágios de seqüenciamento, sem ao menos ter sido atingida a informação-objetivo da pesquisa) pois, se ocorre a fragmentação dessa informação genética estaria inviabilizado o alcance dos mesmos resultados por outros países, que também possuem o direito de promover os benefícios do mapeamento genético para sua população, prejudicando os avanços das pesquisas científicas de diversas instituições.
Nesse sentido, o fato de incidir sobre a informação genética uma gama de interesses referíveis a um conjunto indeterminado de pessoas ou de difícil determinação, faz com que tal informação receba sua tutela não com base na titularidade, mas sim, em função de sua própria relevância para a humanidade, o gênero humano como um todo. Portanto, se podemos considerar que o interesse é sempre uma relação entre uma pessoa e um bem, quando envolve um interesse difuso essa relação se estabelece entre um número indeterminado de pessoas e um bem indivisível, por sua própria natureza[2].
Pode-se concluir que a tutela jurídica que correspondente ao patrimônio genético humano é considerada como um direito individual, por configurar um direito de personalidade e como tal dá ensejo aos mecanismos jurídicos protetivos, mas também um direito difuso, metaindividual, uma vez que seu interesse pertence a um número indeterminado de pessoas, portanto, considerado de natureza indivisível e ligado a seus titulares por uma circunstância de fato. No que é pertinente às características genéticas próprias do indivíduo, que o faz único, na concepção estrutural dos dados genéticos, estes compõem parcela da sua personalidade, sendo, então, necessário que ameaças ou violações sejam impedidas e a dignidade daquele que cedeu o material para análise deve ser preservada.
Como você chegou até aí, dá uma olhadinha no nosso artigo sobre Reprodução Humana Assistida!
REFERÊNCIAS:
NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Direitos da personalidade e dados genéticos: revisão crítico-discursiva dos direitos da personalidade à luz da “natureza jurídica” dos dados genéticos humanos. Belo Horizonte: Escola Superior Dom Helder Câmara – ESDHC, 2010.
NASCIMENTO, Simone Murta Cardoso do. Titularidade e proteção do patrimônio genético humano – tutela individual ou coletiva? Artigo Jurídico disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=5424eee00c1ab222#:~:text=A%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20da%20Rep%C3%BAblica%20de,entidades%20dedicadas%20%C3%A0%20pesquisa%20e
DIAFÉRIA, Adriana. Princípios estruturadores do direito à proteção do patrimônio genético humano e as informações genéticas contidas no genoma humano como bens de interesses difusos. Fiocruz: 2010, p. 10. Disponível em: http://www.dbbm.fiocruz.br/ghente/publicacoes/limite/principios_estruturadores.pdf
https://www.metropoles.com/brasil/coronavirus-governo-libera-patrimonio-genetico-para-pesquisa
https://fcmsantacasasp.edu.br/o-queeo-sisgen
[1] DIAFÉRIA, Adriana. Princípios estruturadores do direito à proteção do patrimônio genético humano e as informações genéticas contidas no genoma humano como bens de interesses difusos. Fiocruz: 2010, p. 10. Disponível em: http://www.dbbm.fiocruz.br/ghente/publicacoes/limite/principios_estruturadores.pdf
[2] Ibidem