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Adoção à brasileira

Camila Lavaqui

A adoção no Brasil carrega um estigma muito grande de ser um processo demorado e complicado. Para tentar se desvencilhar de todos os trâmites exigidos por lei, algumas pessoas se valem da “adoção à brasileira”.

A definição jurídica de adoção é: negócio jurídico extrapatrimonial, envolvendo um ou dois indivíduos interessados em obter a guarda de uma criança. Já no âmbito social a definição de adoção é um pouco diferente, principalmente, pois soa de certa forma pejorativo chamar o ato de “negócio jurídico”, já que represente um grande ato de amor, por um indivíduo que não pertence originalmente à família.

Podemos encontrar a adoção tratada em três grandes leis nacionais: o Código Civil (Lei 10.406/2002), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei 8.069/90) e a Lei Nacional da Adoção (Lei 12.010/2009). A discussão sobre o tema é vasta e sempre gerou muitas alterações legais. Apesar de o CC tratar do assunto, a Lei Nacional da Adoção revogou diversos dispositivos daquele códex (art. 1.620 a 1.629), e ainda alterou os arts. 1.618 e 1.619. Dessa forma, o que se considera é que a matéria ficou consolidada no ECA.

Importa dizer, que foi apenas com a Lei Nacional de Adoção que foi criado o cadastro nacional para facilitar o processo, bem como a limitação de dois anos, prorrogáveis caso necessário, para a permanência da criança e jovem em abrigos, além de outros prazos, a fim de constituir o processo de celeridade, e garantir a dignidade da criança que se encontra em um abrigo.

Hoje em dia, para que a adoção seja concretizada regularmente, isso é, para que se crie o vínculo de filiação até então inexistente, é preciso que observar alguns requisitos legais, quais sejam: consentimento dos pais biológicos (a não ser que estes sejam destituídos do poder familiar), consentimento do adotando (nos casos de maiores de doze anos), estágio de convivência, decisão judicial, bem como outros, que variam caso a caso. Somente então, após cumpridos todos os requisitos, é que a adoção é concedida.

Atualmente, em breve consulta ao Cadastro Nacional de Adotantes, é possível observar a existência de 46,055 pessoas aguardando na fila para adotarem uma criança, em face de apenas 9,043 crianças cadastradas. Podemos perceber, assim, a grande disparidade dos números. Existem muito mais pessoas que querem adotar uma criança, do que crianças disponíveis para adoção. Contudo, as diversas exigências dos pretendentes – a título de exemplo, apenas 26.467 dos pretendentes cadastrados aceitam crianças negras -, bem como a morosidade do processo legal, dificultam o procedimento, de maneira que os pretendentes acabam cansando de esperar na fila e busquem outros meios de obter a nova prole.

Não é raro, portanto, nos depararmos com um caso de “adoção à brasileira”, isso é, quando uma pessoa registra uma criança como se sua filha fosse, sabendo que, na realidade, é de outra pessoa, sem passar pelo processo judicial de adoção. Esse procedimento é ilícito, pois não segue todos os trâmites legais necessários.

Em tempo, a prática do ato descrito acima é caracterizada como crime, previsto no artigo 242 do Código Penal:

Art. 242 – Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil:

Pena – reclusão, de dois a seis anos.

Parágrafo único – Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza;

Pena – detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena.

É preciso, assim, tratar do tema com cautela. Apesar de ser ilícita (de maneira que não pode, em tese, ser válida), também existe no Direito o instituto da filiação socioafetiva, que decorre da relação entre pais e filhos que não possuem vínculo genético e que tem sua relação estabelecida no vínculo, afeto e convivência (falamos mais sobre esse assunto no artigo “Direito à filiação e à origem genética”).

Dessa forma, a “adoção à brasileira” vem sendo relativizada pelo Direito de Família (que se difere do Direito Penal), de tal sorte que fica a critério do juiz analisar as circunstâncias envolvidas em cada caso.

Assim, a depender do caso, embora a adoção irregular seja um ato criminoso, pode-se dizer que, uma vez comprovada a existência de vínculo socioafetivo, o registro irregular – assim como a adoção – é irrevogável. Quer dizer, o registro, ainda que ilegal, não é facilmente desfeito, por força do princípio do melhor interesse da criança.

Uma vez estabelecido o registro, estabelece-se, também, uma relação jurídica paterno filial, que decorre do vínculo socioafetivo. Dessa forma, nem sempre é recomendada a sua extinção, pois pode acarretar danos psicológicos ao filho.

Na grande maioria dos casos, o pedido de desconstituição de paternidade vem após o término da relação afetiva com a mãe do filho reconhecido indevidamente. Nessas situações, predomina o entendimento acima citado, isso é, de que apesar de irregular o registro, uma vez existem a socioafetividade paterna, ele será mantido e aquele que efetuou o registro será considerado pai para todos os fins – em especial se o pai biológico é desconhecido ou não é presente. Dessa maneira, a “adoção à brasileira”, apesar de não ser tecnicamente considerada uma adoção, pode ter efeitos jurídicos protegidos.

Importa dizer, contudo, que o objetivo de punir e rejeitar a “adoção à brasileira” é evitar que injustiças sejam praticadas com famílias mais humildes, que não necessariamente querem doar os filhos, mas que podem ser coagidas a isso por pressão social e econômica. Além disso, a prática pode também encobrir casos de venda ou tráfico de crianças. E, sobretudo, esse método não considera os interesses da criança, que é o que mais importa.

No entanto, o parágrafo único do art. 242, CPC, nos apresenta uma possibilidade de diminuição de pena, quando o agente realiza a conduta por motivo de reconhecida nobreza, isto é, por um motivo que demonstre humanidade, generosidade e/ou altruísmo por parte do agente. O juiz pode, ainda, conceder o perdão judicial ao agente, deixando de aplicar qualquer pena.

Destarte, o papel do juiz é de extrema importância, para que sejam julgadas quais eram as intenções daquele que realizou a “adoção à brasileira”, em especial sua culpabilidade (porque aquela conduta foi realizada, se foi realmente por um motivo nobre ou se foi por vaidade, ou ainda, para praticar outro crime – como o tráfico de crianças), para que conclua, enfim, qual das opções trazidas em lei é a melhor para aquele caso específico.

É entendimento pacificado entre os Tribunais, em especial o STJ, de que o melhor interesse da criança é o que deve prevalecer sempre em ações desse tipo. Assim, não é considerado uma atitude justa um juiz desfazer um laço familiar já consolidado, apenas para que se cumpra a norma legal.

Frisa-se, por fim, que a conduta apenas deixará de ser punida quando comprovada a finalidade digna em face do adotado. Caso contrário, o agente sofrerá as penas e condenações trazidas pelo Código Penal para esse tipo de crime.

Bibliografia

CABETTE, Eduardo Luiz Santos, e RODRIGUES, Raphaela Lopes. “Adoção à brasileira: crime ou causa nobre?”. Em janeiro de 2019. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/293739/adocaoabrasileira-crime-ou-causa-nobre. Acesso em 18 de agosto de 2020.

CNA. Relatórios estatísticos. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/público/index.jsf. Acesso em 18 de agosto de 2020.

Direito Familiar. “‘Adoção à brasileira’: o que é isso?”. Em 2018. Disponível em: https://direitofamiliar.jusbrasil.com.br/artigos/561219481/adocaoabrasileiraoqueeisso. Acesso em 18 de agosto de 2020.

Revista “Em discussão” do Senado Federal. “Adoção ‘à brasileira’ ainda é muito comum”. Disponível em: https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/adocao/realidade-brasileira-sobre-adocao/adoca…. Acesso em 18 de agosto de 2020.

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